alice ripper
5 min readFeb 9, 2023

A mulher do lago

O réveillon se aproximava e Cristina saía com suas amigas para a casa de veraneio de sua família. Agora ela já tinha seus 22 anos e o acordo que havia feito desde que entrou na faculdade com os pais vinha se cumprindo há um bom tempo: natal em família, ano novo com amigos. Dessa vez, a passagem de ano seria na casa dela, uma casa grande, antiga, com piscina e uma pequena trilha que dava para um lago enorme e do qual alguns pescadores tiravam seu ganha-pão. Elas tinham combinado de fazer um churrasco, só de mulheres. Paula era a churrasqueira oficial do grupo e Luisa e Helena iriam ao mercado comprar tudo pra festa.

Tudo ia conforme planejado. Elas se dividiram e foram adiantando cada uma, a sua parte. E Cristina já tinha separado uns cogumelos que comprou pra elas usarem juntas no lago. Tudo arrumado, carnes devidamente guardadas para o churrasco do dia 31, elas ainda tinham tempo para descansar. Foi quando Helena sugeriu de usarem parte do cogumelo que levaram e irem para o lago, aproveitar o dia bonito que fazia, ensolarado e quente.

Com exceção de Luisa, todas concordaram, mas essa acabou sendo voto vencido, queria deixar pra usar só no dia 31. Cada uma comeu duas gramas, um gosto horrível, parecia que tinham comido a ração do cachorro. Colocaram roupa de banho e foram para o lago, levaram alguns biscoitos, frutas e água. Chegando lá, estenderam as cangas ao redor do lago e fizeram um pequeno piquenique. Enquanto comiam, o efeito batia, as cores ao redor eram incrivelmente vivas e fortes, a comida parecia a melhor de todas já experimentada. Eufóricas, corriam pelo mato, davam piruetas, ensaiavam malabarismos com frutas e se abraçavam longamente. Elas decidiram pular juntas na água, deram as mãos e saltaram. A temperatura estava extremamente agradável e uma brisa fresca passou por ali.

Tudo parecia perfeito, conforme anoitecia, elas juntavam as coisas para voltarem à casa. Foi quando Cristina a viu pela primeira vez. Ao olhar uma última vez para o lago, ela viu algo se movimentando na água, parecia um animal grande mergulhando. Só deu tempo de pegar a ponta de sua cauda entrando na água. Ela sorriu e pensou em como a natureza é perfeita. Pegou sua canga e quando se virava para sair escutou alguém cantarolando, uma voz linda, algo quase angelical, que ela nunca antes havia escutado. Curiosamente parecia vir de dentro do lago. Ao olhar com mais atenção, viu um rosto de mulher, um olhar intenso que parecia mais um convite para um mergulho.

Ela andava lentamente em direção ao lago, deixou cair pelo caminho a canga e a bolsa. Paula percebeu e chamou seu nome, uma, duas vezes. Na terceira correu até ela e a sacudiu. Nesse momento ela parecia ter saído de um transe e ao olhar para a água novamente nada mais via além do lago parado e tranquilo.

Voltaram para a casa e jogaram alguns jogos de tabuleiro. Como era calma a vida sem as perturbações da cidade grande, sem homens forçando assunto e contato físico, apenas uma casa e 4 amigas! Cozinharam juntas o jantar, comeram, riram, conversaram, tiraram a mesa e se dividiram com a louça. Finalmente deitaram para dormir. Cada uma com um sonho mais confuso que o outro: luzes, cores, figuras, criaturas marinhas e híbridas humanoides, memórias a muito esquecidas que retornavam em seus inconscientes, mas ao final, um sonho tranquilo e relaxante.

No dia seguinte, se lembraram da champagne que não compraram. Como poderiam virar o ano sem estourar uma garrafa de champagne e brindar pelas aventuras que viriam pela frente? Decidiram ir juntas ao mercado e lá, um grupo de jovens rapazes se aproximou e começou a conversar, perguntar de onde eram, onde estavam, se viajaram sozinhas… Elas deram as respostas mais evasivas possíveis e se apressaram em sair. No caminho, perceberam que um carro as seguia e ao olhar com mais atenção, Luisa notou que eram aqueles rapazes que estavam em seus encalços.

Tentaram despistá-los e acreditavam ter conseguido. Finalmente, paz outra vez. Chegaram na casa e começaram os preparativos do churrasco. Um pagodinho tocando ao fundo, algumas latinhas de cerveja abertas e elas dançavam em pares, se revezavam na churrasqueira, mas sempre a comando de Paula. Conforme anoitecia, decidiram tomar mais umas gramas que restaram do cogumelo e entrar na sauna. Ficaram ali por um tempo conversando e depois pularam na piscina na virada do ano. Estouraram a champagne, brindaram e enquanto curtiam, ouviram barulho de um carro que se aproximava.

Do carro, saltaram 4 rapazes, o líder deles andava mais a frente e de braços abertos gritava:

— Olha só, tem uma festinha de ano novo rolando aqui e a gente nem sabia!

O outro, ao seu lado, respondia em voz alta:

— Sorte que chegamos a tempo de tomar uma champagne e brindar! E olha que ainda tem uma mina pra cada um aqui! Esse ano novo promete!

Elas se entreolharam, saíram da piscina, se enrolaram nas toalhas e cangas que estavam ali e tentaram expulsá-los, dizendo que essa casa era delas e que eles não haviam sido convidados. Como eles se mostraram resistentes e debochavam de tudo que elas diziam, elas decidiram mudar de tática.

Helena sugeriu que todos esticassem a festa para o lago, e nenhum dos rapazes demonstrou objeção à ideia. Então, seguiram pela trilha. Elas o tempo todo se esquivando das tentativas de toques não solicitados e das cantadas invasivas que eles faziam.

Ao chegarem no lago, esticaram as cangas no chão. Cristina percebeu o mesmo movimento na água e notou que a mulher de antes estava ali, vez ou outra podia ver seu rosto emergindo do lago. Então uma ideia a ocorreu e tudo aconteceu muito rápido. Cristina entrou lentamente na água e sentiu que a mulher nadava em sua direção. Quando o líder dos rapazes percebeu, foi atrás de Cristina e um dos outros amigos pegava o celular para filmar.

Cristina fingiu não perceber que ele se aproximava e continuou seu caminho. Quando notou que a mulher estava mais próxima, começou a cantarolar o que lembrava de ter ouvido no dia anterior. Suas amigas perceberam sua intenção e fizeram o mesmo. Os rapazes apenas riam, sem entender o que estava acontecendo. Foi quando Cristina ouviu que alguém de dentro da água as acompanhava na melodia. Sorriu satisfeita. Mergulhou e viu em sua frente a mulher, metade mulher, metade peixe, que nadava rapidamente em sua direção. Esperando o pior, fechou os olhos, mas a mulher deu a volta por ela e seguiu em direção ao rapaz. Quando saiu de dentro da água escutou os gritos e lamúrias do lado de fora. As amigas haviam se juntado num canto e os rapazes tentavam desesperadamente sair do lago, mas eram puxados por diversas criaturas meio mulher, meio peixe. Um a um, eles foram devorados por elas, que abriam enormes bocas com incontáveis dentes pontudos, deixando para trás um rastro de sangue que se misturava com as águas do lago.

Cristina aproveitou a distração para sair da água e viu aquela mesma mulher olhando para ela outra vez e sorrindo um sorriso malicioso. Ela apressou o passo e se juntou às suas amigas. A mulher do lago olhou para elas uma última vez, outros rostos femininos espiavam atrás dela e sem abrir a boca sua voz ecoou, doce, angelical e profunda.

— Obrigada, vejo que sua mãe lhe passou a tarefa com perfeição.

Mergulhou de vez no lago e sumiu na escuridão do novo ano que começava.